No primeiro ano da faculdade, eu parei completamente de me importar com as notas. No ensino médio, tinha sido recorrentemente um dos melhores alunos e cheguei a passar em primeiro lugar no vestibular. Lembro de proclamar, nas vésperas do primeiro período, meus planos de ficar com o maior CR da história do curso; pensava que ia gabaritar todas as provas, impressionar todos os professores, me converter em celebridade acadêmica como tinha sido no colégio. Passados alguns meses, já sequer frequentava a maioria das aulas. No terceiro semestre, parei de estudar por completo - e cheguei até a reprovar numa matéria, coisa que me parecia impensável até então.
O que aconteceu? Olhando para trás com um pouco mais de maturidade, a explicação que ensaio começa com um ponto de partida máxima simples, mais eloquentemente enunciado pelo filósofo Pitón: “tudo na vida é pra comer alguém”.
Ora, esse meme não seria tão popular se não contivesse um fundo de verdade. Volto ao meu caso pessoal: como nerd de quinze ou dezesseis anos, não tenho dúvida de que o empenho acadêmico servia para compensar a frustração amorosa. Meu ego recorria a explicações sofisticadas. Na época, eu citava Kant - que nunca li - para condenar a “pegação” com dedo em riste! Mas, no fundo, vejo que restava apenas “minha timidez, a minha incompetência para a vida.”1 Em algum grau, esse tipo de reação é natural ao ser humano: para proteger nossa autoestima, desvalorizamos aquilo que somos incapazes conquistar.
Por esse prisma, a entrada na faculdade poderia significar o início do meu desleixo acadêmico simplesmente porque essa preocupação se tornara menos relevante. Descobri que eu não era tão ruim com as meninas quanto pensava e, por conseguinte, deixei de tentar compensar com as boas notas.
A sabedoria do filósofo Pitón é indiscutível, mas também incompleta. Afinal de contas, não explica o porquê do desejo de “comer alguém”. Seria simples, no meu caso, atribuir essa explicação aos hormônios da adolescência. Mas nunca fui muito de acreditar nessas histórias. Mesmo no suposto auge da atividade hormonal, o desejo puramente físico raramente consegue cegar por completo a razão. Tanto é que as explicações que meu ego engendrava eram mais que suficientes pra me impedir de ir nas festinhas ou procurar outros meios de satisfazer a dita “frustração”.
Se aprendi alguma coisa no curso de economia, foi a lei da oferta e da demanda: se o homem realmente fosse escravo do ímpeto sexual, as prostitutas seriam mais caras..
Não - sexo é uma questão de ego. Mais do que o ato em si, nós desejamos ser desejados.
Um dos trechos mais persuasivos de Dostoiévski é do (muito subestimado) livro “O Adolescente”, que narra a história de um jovem igualmente controlado pelos ímpetos da puberdade. Assim como eu durante o ensino médio, ele era obcecado com ser rico - sua “grande ideia” era ter tanto dinheiro quanto um Rothschild. Mas, em um discurso revelador, bem ao estilo Dostoiévskiano, ele explica o motivo por trás da sua ambição:
Em meus sonhos, mais de uma vez agarrei aquele momento no futuro em que minha consciência estaria plenamente satisfeita e o poder pareceria muito pouco. Então — não por tédio, nem por angústia sem propósito, mas porque desejarei algo infinitamente maior — darei todos os meus milhões às pessoas; deixarei que a sociedade distribua todas as minhas riquezas, e eu — mais uma vez me misturarei com a nulidade! A simples consciência de que eu tivera milhões nas mãos e os jogara na lama me alimentaria no meu deserto como um corvo. Esse é o meu poema! E saiba que preciso precisamente de toda a minha vontade depravada — apenas para provar a mim mesmo que sou forte o bastante para renunciar a ela.
E eu não daria apenas a metade, porque então isso seria banal: eu apenas ficaria duas vezes mais pobre e nada mais; mas daria precisamente tudo, tudo até o último copeque, porque, tendo me tornado mendigo, me tornaria de repente duas vezes mais rico que Rothschild! Se não entenderem isso, não é culpa minha; não vou explicar.
Dostoiésvki percebe que não é a promessa de gozos materiais que anima a alma elevada, mas a esperança espiritual de autossuficiência e controle. O desejo de “comer alguém" jamais persistiria por mais que alguns minutos se fosse exclusivamente filho do instinto. Não, quando estudamos, trabalhamos ou arquitetamos qualquer coisa que seja “pra comer alguém”, no fundo quem comanda não é o instinto, mas outra parte da mente - por enquanto, chamemo-la de “ego”. O ego deseja se provar: deseja ser reconhecido, desejado, se impôr diante do mundo e do outro.
Assim, o desejo sexual pode ser extremamente poderoso nos momentos em que se apossa do corpo; mas é incapaz de tornar-se o modus operandi de qualquer ser humano. Somos abençoados (ou amaldiçoados?) com o intelecto e é por meio dele que tomamos qualquer decisão que demande mais que cinco impulsivos minutos. Quando traçamos planos “pra comer alguém”, quem dirige a razão para arquitetá-los é o ego. A motivação verdadeira é a sede de prestígio - tudo na vida é pra impressionar alguém.
No meu último ensaio, cheguei a tangenciar esse tema ao mencionar o conflito que marca o início da Ilíada. A briga começa, em tese, porque Agamênon decide tomar para si a jovem Briseide, escrava oferecida a Aquiles como despojo na última batalha; no entanto, ainda que a posse da bela mulher seja o objeto factual da disputa, o que realmente está em jogo não é o prazer - mas o direito - de deitar-se com ela. Em outras palavras, eles não disputam os benefícios decorrentes de ser o “melhor entre os Aqueus”, mas o título em si e o respeito que confere. É por isso que, como observei então, a situação fica realmente tensa quando Aquiles aponta para o cetro do rival - símbolo do seu poder temporal e do reconhecimento dos demais gregos.
A biografia de Alexandre, o Grande, é talvez o maior exemplo dos feitos desse dito “ego”. Desde criança, Alexandre sonhava em superar o pai. O biógrafo Plutarco conta que a cada vitória do Rei Filipe nas guerras, o jovem príncipe lamentava sobrarem menos terras para suas próprias conquistas. Era obcecado com as histórias dos grandes homens que lhe precederam, como o próprio Aquiles ou Ciro, fundador do Império Persa. Ao mesmo tempo, a educação sob um tutor espartana lhe teria dado as ferramentas para o controle total do impulso - diz-se até que Alexandre abominava o sexo, porque fazia-o “sentir-se mortal”. É dele a frase: “mais nobre que dominar o mundo é conquistar a si mesmo”.
Mesmo com todos esses princípios, a ascensão do jovem príncipe antecedeu a queda. Nos últimos anos da vida, Alexandre se entregou à bebida e à fúria com cada vez maior frequência. Perspicaz, Plutarco nota que não era o vinho em si que o seduzia; o conquistador se divertia com a conversa e, sobretudo, com a adulação dos puxa-sacos que se aproximavam naqueles momentos de descontração. Se confiamos nas biografias, Alexandre fez tudo que fez movido pelo desejo de reconhecimento - suas grandes vitórias e seus grandes excessos.
Apesar disso, a vida de Alexandre encantou grandes homens de todas as épocas, desde César até Steve Jobs. Quando li mais a fundo sobre ele, também fiquei obcecado. É aí que precisamos entrar numa terceira derivada.
Antes de entender se tudo na vida “é pra comer alguém” ou “pra impressionar alguém”, é preciso perguntar porque desejamos tanto assim impressionar os outros. Tirar notas boas certamente impressionava alguma gente; mas ninguém jamais me exortou a querer seguir os passos de Alexandre, a “entrar para a história” - ora, quem eu queria impressionar? Plutarco?
Olhando friamente, há dois aspectos que mais me maravilham na vida do herói:
O primeiro é que Alexandre nasce já um príncipe herdeiro, destinado a governar o maior poder do mundo grego. É verdade que sua sucessão não era certa, mas já aos 20 anos o menino teria todas as condições para uma vida pacífica e bem afortunada. Nenhum desejo material jamais lhe faria falta. Assim, a renúncia de todas as benesses e a escolha de partir jornada sem volta até o fim do mundo se torna uma grande exortação. Os gregos falavam do pothos - uma mistura de desejo e nostalgia que impedia qualquer satisfação definitiva. Alexandre representava esse princípio, um fulgor expansionista até os limites do mundo, que talvez só tenha sido igualado pelos navegadores portugueses2.
O segundo é que ele tenha perseguido os desígnios do pothos com seus amigos. Hephaestion, é claro, era seu companheiro mais famoso - os antigos chegavam a descrevê-los como uma mesma alma habitando dois corpos; mas os laços de amizade ligavam toda a hetaireia (literalmente, “corpo de companheiros”) do monarca. Vários tinham sido seus colegas na cidade de Mieza, onde o pai de Alexandre constituiu a primeira boarding school de que temos notícia. Lá, sob tutoria do próprio Aristóteles, formou-se boa parte da elite macedônia. Assim, Alexandre fez mais que conquistar mundo; conquistou-o cercado de amigos.
sses dois elementos apontam para um desejo mais alto guiando o jovem rei. Pelo menos desde que derrotou os persas na Batalha de Issus, não havia mais ninguém a impressionar. O próprio senhor dos Persas lhe oferecera metade do Império após a vitória. Por que Alexandre recusou? Não era, afinal, uma questão de reconhecimento externo, de prestígio. De um lado, era o pothos que lhe guiava - o desejo violento de explorar o universo até as fronteiras desconhecidas, de encontrar os limites da terra. Do outro, a promessa de mais aventura - do legítimo divertimento que ele deveria ter durante aquelas campanhas, atravessando planícies enquanto trocava ideia com seus amigos, antes meros colegas de escola e agora transformados em generais, cavalheiros e sátrapas.
Nesse ponto, fica um pouco mais difícil continuar a máxima do “tudo na vida é…” - mais justo me parece dizer que tudo na vida acontece por muitas coisas3. Ainda assim, se tentarmos generalizar, a palavra que melhor define as motivações mais fundamentais de Alexandre me parece ser paixão. Os gregos diriam Eros (que, na mitologia, era irmão do próprio Pothos). A história do herói é uma história de busca pelas paixões - um desejo apaixonado por conhecer e explorar o mundo; e uma paixão igualmente arrebatadora pelos seus amigos, em cujas almas via tanta beleza como no mundo exterior.
O melhor aprendizado que tirei da biografia acontece na cena em que ele visita o túmulo de Aquiles, logo após desembarcar na Ásia. Profere o futuro conquistador:
Bem-aventurado foi ele, que encontrou na vida um amigo fiel e na morte um grande arauto.
O mesmo desejo por belas amizades e por belas histórias é a força motriz de todas as conquistas. Tudo na vida é pra experimentar o belo.
Nessas três seções eu tentei narrar uma progressão entre três tipos de desejo. Primeiro, o desejo meramente corpóreo, instintivo; depois, o desejo social, a busca do prestígio e do reconhecimento; por fim, um desejo quase etéreo pelo belo, infinito e eterno. Essa formulação não é minha. Além do Pitón, também tenho de dar devidos créditos a Platão.
Na República, ele divide a alma em três partes:
Epithumetikon, ou apetite. Os desejos físicos do corpo, como a vontade de comida, de sexo, de prazer, de dormir ou de realizar as demais funções biológicas. É a parte que temos em comum com todos animais.
Thumos, ou espírito. A parte irascível da alma, que por um lado se irrita diante das injustiças e se apieda diante das tragédias; por outro busca o reconhecimento e a honra. É “social” por excelência e, talvez, a única exclusivamente humana.
Logos, ou razão. A parte “calculante” da alma, que nos faz pensar. O Logos é naturalmente orientado ao bom e ao belo, fonte dos desejos mais intensos e etéreos do homem4. É o aspecto mais “divino” na sistematização platônica.
Essa elegante tripartição faz da República o maior tratado de psicologia já escrito. Apesar disso, a primeira leitura da obra pode dar a entender que o maior conflito na alma contrapõe a razão e o apetite. Talvez, de fato, esse seja o conflito mais comum. Na Kalipolis, a cidade ideal descrita por Sócrates, a maior parte dos cidadãos são agricultores e trabalhadores manuais governados pelo aspecto mais inferior.
Apesar disso, o verdadeiro público de Platão não era dominado pelos prazeres. Platão escreve para os potenciais reis-filósofos, para as “almas dignas de si próprias”5 - os leitores com as melhores naturezas, porque “nenhuma natureza pequena faz qualquer coisa grande, seja para um homem privado ou para uma cidade” (495b). Seu público-alvo são os tipos elevados que frequentemente se encontram numa encruzilhada: de um lado, a busca pelo reconhecimento humano, a mesma que impulsionara Alexandre em suas grandes conquistas; do outro, a busca pelo conhecimento das coisas eternas, profissão do filósofo.
A sofisticada interpretação de Leo Strauss acerca da República diz que o propósito de Sócrates na obra é convencer o leitor ambicioso da superioridade da vida filosófica e contemplativa do logos sobre a vida política e ativa do thumos. Longe de mero ajudante da razão, como a leitura simplória poderia indicar, o espírito é na verdade seu maior inimigo.
Entender essa disputa entre a vida prática e a vida contemplativa foi o ponto de partida da minha maior arrogância intelectual - decidi discordar de Platão6. Todo homem, mesmo o maior dos pensadores, quer provar a superioridade do seu estilo de vida - foi o que disse a mim mesmo.
O filósofo prescreve a filosofia? Grandes coisas. Não quero ser filósofo.
Assim, armado com a arrogância da juventude, fiz a escolha pela vida prática (leia-se, por não me tornar um acadêmico). Fiz essa escolha também porque o thumos sempre foi muito forte dentro de mim. Voltando à pergunta que inaugurou esse ensaio, vejo hoje que parei de me importar com notas na faculdade porque não tinha mais ninguém para impressionar. As coisas que impressionavam na faculdade não eram boas notas, mas bons estágios, bons planos de carreira e, sobretudo, a perspectiva de ganhar muito dinheiro. Percebi cedo que não era tirando boas notas que conseguiria concretizá-la.
Apesar disso, esse desejo de impressionar é quase sem-fim (pelo menos para quem não é Alexandre depois de derrotar os Persas). Num mundo de bilionários, de que adianta ser rico? Qual é a graça de morar numa cobertura na Vieira Souto se Elon Musk pode influenciar o curso das eleições americanas? Onde essa busca por prestígio e poder para? O próprio Elon Musk teve de se desculpar diante do Trump… não é difícil viver a vida inteira tentando impressionar mais e mais gente.
Francis Fukuyama, autor do mal-interpretado End of History and the Last Man, entendeu os riscos que o thumos representa ao sistema democrático, assim como já representava na Atenas de Platão. Certos indivíduos tendem a desenvolver o que Fukuyama chamou megalothymia - a busca exacerbada por reconhecimento. É esse desejo que de tempos em tempos inspiraria novos tiranos, pondo em risco a estabilidade do capitalismo liberal.7
Antonio García Martínez, um comentarista cultural do Vale do Silício, fez um comentário bastante perspicaz sobre o tema:
A aposta liberal no Fim da História é que o capitalismo convença os aspirantes a Castros e Hitlers e Putins do mundo a pegar um laptop e começar uma startup, em vez de entrar jogos de prestígio muito mais viscerais com armamento militar moderno.
Minha escolha pela vida prática coincidiu com a decisão de começar uma startup, em alguma medida porque fui atraído por esses jogos de prestígio.
No universo tech, costuma-se traçar a distinção entre fundadores “mercenários” e “missionários” - aqueles que criam empresas pelo dinheiro ou pelo prestígio (geralmente repudiados) e aqueles que buscam grandes missões e projetos - ir a Marte, curar o câncer, criar a inteligência artificial etc. A verdade, no entanto, é que quase ninguém é um mero missionário abnegado. Paul Graham, o fundador do YCombinator e quiçá o maior guru do Vale do Silício, é categórico quando afirma8:
A mensagem do Vale do Silício para você é: você deveria ser mais poderoso.
No fundo, quantos missionários não estão também buscando poder, isto é, impressionar alguém? E quantos buscam o pothos, o eros, o bem por si mesmo? Ainda não tenho essa resposta.
Aos quinze anos, me convenci de que tinha encontrado o sentido da vida. Ora, o que limita a vida é o tempo; portanto, o objetivo da vida é transcender o tempo - é ser lembrado. Por uma década, quando me perguntavam o que eu queria da vida, era isso que respondia.
Um dia, não há muito tempo, meu melhor amigo me confrontou: “Se você quisesse mesmo ser lembrado, você estaria filosofando e escrevendo. Quantos empreendedores serão lembrados daqui a cem, mil anos? O que você quer mesmo é ser reconhecido em vida. É impressionar os outros.”
Foi com essa resposta que eu percebi que continuava usando as desculpas sussurradas pelo intelecto pra justificar os desejos do thumos. Aos quinze anos, eu elaborava argumentos kantianos para explicar o foco na escola. Aos vinte e cinco, argumentos platônicos para explicar o foco no trabalho. Certas coisas nunca mudam.
Eu adoraria terminar esse ensaio com uma bela história de como eu descobri o que eu realmente queria e me libertei do thumos e da vontade de impressionar os outros9. Quem sabe, faço isso daqui a uns dois ou três anos. Até lá, pensamentos mais simples…
Tirando os grandes motivos e as grandes justificativas, a principal razão porque eu continuo fazendo o que faço é porque estou me divertindo. Me divirto trabalhando, me divirto tentando aprender sobre marketing no TikTok, me divirto conversando com usuários e acima de tudo me divirto compartilhando as vitórias e as ocasionais derrotas com meu cofundador.
Seja de Pitón, de Kant ou de Platão, a filosofia é muito boa em desconstruir motivos. Não é nem de perto tão boa em erguê-los. Negar ou afirmar a filosofia também requer algo de instinto - afinal, “a metafísica é consequência de se estar mal disposto”10.
Aos meus leitores bem dispostos, se preciso terminar com uma exortação, que seja a seguinte: façam aquilo que lhes diverte tanto que vocês gostariam de fazê-lo mais e mais vezes, talvez até por toda a eternidade; mas jamais façam-no sozinhos - tragam consigo as pessoas que vocês mais admiram e mais querem ter por perto. Pode ser uma revista, uma empresa, um canal aqui no Substack, ou simplesmente sair todo dia para conversar. O imperativo é só fazer - não ficar parado, se perguntando, enquanto o “tudo na vida” vira coisa alguma.
Quanto da vida é pra se perguntar quanto da vida é pra qualquer coisa?11 Espero que bem pouco.
Fragmento do Livro do Desassossego de Pessoa que trata exatamente desse tipo de resposta racionalizante do ego para os fracassos do amor:
“Dois, três dias de semelhança de princípio de amor…
Tudo isto vale para o esteta pelas sensações que lhe causa. Avançar seria entrar no domínio onde começa o ciúme, o sofrimento, a excitação.
Nesta antecâmara da emoção há toda a suavidade do amor sem a sua profundeza — um gozo leve, portanto, aroma vago de desejos; se com isso se perde a grandeza que há na tragédia do amor, repare-se que, para o esteta, as tragédias são coisas interessantes de observar, mas incômodas de sofrer. O próprio cultivo da imaginação é prejudicado pelo da vida.
Reina quem não está entre os vulgares.
Afinal, isto bem me contentaria se eu conseguisse persuadir-me que esta teoria não é o que é, um complexo barulho que faço aos ouvidos da minha inteligência, quase para ela não perceber que, no fundo, não há senão a minha timidez, a minha incompetência para a vida.”
Fernando Pessoa também escreveu sobre isso. Veja a última estrofe de “Padrão”:
E a Cruz ao alto diz que o que me há na alma
E faz a febre em mim de navegar
Só encontrará de Deus na eterna calma
O porto sempre por achar.
Aqui não é o lugar de me alongar nesse tema, mas a tentativa de encontrar uma única motivação coerente, embora desejo de toda alma desejosa “ordenar toda a vida”, me parece fadada ao fracasso. Cada vez mais, vejo a ideia do indivíduo dotado de vontade uníssona como uma construção artificial.
Há quem leia Platão e interprete que o eros está junto do epithumetikon na parte mais inferior da alma. Eu compro a interpretação dos Straussianos como Alan Bloom e Seth Benardette para quem Sócrates era um “grande erótico” (citação do Nietzsche) e eros na verdade o diretor dos instintos mais nobres do filósofo. Ver, sobre isso, a leitura que Benardette faz sobre o Fedro; ou, simplesmente, ler o Banquete, onde a associação entre Eros e Logos fica bem clara.
Novamente Fernando Pessoa, no Livro do Desassossego: “Toda a alma digna de si própria deseja viver a vida em Extremo.”
A melhor obra que já li sobre esse conflito é O Jogo das Contas de Vidro, ou Magister Ludi, último escrito de Herman Hesse. Nele, narra-se a biografia de um “monge do intelecto” numa sociedade voltada para a contemplação, que percebe no meio da vida a futilidade da sua jornada perante o mundo.
Fukuyama é geralmente lido como um defensor do capitalismo liberal e do fim da história. No entanto, ele foi aluno de Kojéve e Leo Strauss. Vale uma leitura esotérica das suas palavras:
In particular, the virtues and ambitions called forth by war are unlikely to find expression in liberal democracies. There will be plenty of metaphorical wars—corporate lawyers specializing in hostile takeovers who will think of themselves as sharks or gunslingers, and bond traders who imagine, as in Tom Wolfe’s novel The Bonfire of the Vanities, that they are “masters of the universe.” (They will believe this, however, only in bull markets.) But as they sink into the soft leather of their BMWs, they will know somewhere in the back of their minds that there have been real gunslingers and masters in the world, who would feel contempt for the petty virtues required to become rich or famous in modern America. How long megalothymia will be satisfied with metaphorical wars and symbolic victories is an open question. One suspects that some people will not be satisfied until they prove themselves by that very act that constituted their humanness at the beginning of history: they will want to risk their lives in a violent battle, and thereby prove beyond any shadow of a doubt to themselves and to their fellows that they are free. They will deliberately seek discomfort and sacrifice, because the pain will be the only way they have of proving definitively that they can think well of themselves, that they remain human beings.
The end of history will be a very sad time. The struggle for recognition, the willingness to risk one's life for a purely abstract goal, the worldwide ideological struggle that called forth daring, courage, imagination, and idealism, will be replaced by economic calculation, the endless solving of technical problems, environmental concerns, and the satisfaction of sophisticated consumer demands. In the post-historical period there will be neither art nor philosophy, just the perpetual caretaking of the museum of human history. I can feel in myself, and see in others around me, a powerful nostalgia for the time when history existed. Such nostalgia, in fact, will continue to fuel competition and conflict even in the post-historical world for some time to come. Even though I recognize its inevitability, I have the most ambivalent feelings for the civilization that has been created in Europe since 1945, with its north Atlantic and Asian offshoots. Perhaps this very prospect of centuries of boredom at the end of history will serve to get history started once again.
Esse ensaio, Cities and Ambition, é uma obra prima. Pergunte a si mesmo, leitor: qual é a exortação que a sua cidade te faz? Me faço essa mesma pergunta o tempo todo sobre o Rio de Janeiro.
Se eu quisesse encher esse texto de ainda mais referências, começaria aqui a fazer os paralelos entre o thumos e o desejo mimético na teoria de René Girard. Basta dizer que para mim eles são essencialmente a mesma coisa.
Tabacaria, de Fernando Pessoa. Ele caneta demais…
Uma última nota porque não resisto fazer recomendações de leitura por aqui. Um livro que eu recomendo muito a todo sensitive young man é O Problema do Puer Aeternus, da psicóloga junguiana Marie-Louise von Franz. Caso o leitor (justamente) considere que minha conclusão foi um pouco abrupta e pouco desenvolvida, a leitura do trecho abaixo desenvolve o tema da exortação e o problema do overthinking:
The hero comes to the great witch, the Baba Yaga (...) He first says a magic verse to stop the hut, which he then enters and finds the big old witch scratching the ashes in the stove. She turns around and says, “My child, are you going voluntarily, or involuntarily?” What she means is, are you going on this quest of your own free will? Since the boys had been challenged by their father at the dinner party, when the father said that none of his boys had yet done as much as he had, in a way they did start involuntarily. The impulse came from the traditional past and was handed on to the future. On the other hand, it is voluntary, particularly in the case of the youngest, who has been laughed at as someone who must not go because he will never get anywhere and should stay at home by the stove. So although one can say that he really did go voluntarily, there is something wrong with the question. First, however, I should give you the answer because that shows how the problem should be dealt with. Ivan answers, “You should not ask a hero such questions, old witch. I am hungry and want my dinner, so you hurry up!” And he ends up with some threats—very vulgar and very delightful! He knows quite well, you see, that the witch does not want an answer and that the question is a trick designed to lame him. If he were to answer the question it would mean slipping on a banana-skin. It is just a diversion—not something that should be discussed.
The question of free will is one of the philosophical problems which has never yet been solved. Free will is a subjective feeling. Intellectually and philosophically, there is a pro and a con, and you can never prove either side. If you ask yourself whether you are doing something because you have to or because you want to, you will never find out. You can always say that you feel as though you wanted it, but perhaps it is only an unconscious complex which makes you feel like that. So how can you ever say which it is? It is a subjective feeling, but it is tremendously important for the ego to feel free to a certain extent. It is a feeling problem about the mood in which one finds oneself. If you cannot believe in a certain amount of free will and therefore free initiative of the ego, you are completely lamed because then you have to go into all your motives. You can go into the past and look into the unconscious more and more deeply, but you will never get out of it. And that is the spider’s trick of the mother complex.
Cada, seus textos são os melhores que eu leio aqui no substack, de verdade. Esse e o "se você é tão inteligente..." São muito identificáveis e acrescentam um degrau a mais no que eu já pensei sobre o assunto.
Infelizmente, ri muito na parte em que você desistia das notas no terceiro período e reprovou uma matéria, porque estou exatamente nessa situação na faculdade de economia!