Se você é tão inteligente, por que você não tem tudo que você quer?
A modernidade fez promessas demais aos jovens sensíveis de classe média alta
UM FILME UNDERRATED: The French Dispatch, do Wes Anderson, é composto de três curtas sátiras dos grandes produtos da cultura francesa na segunda metade do século 20: a arte moderna, o estudante revolucionário e a alta gastronomia. A segunda narrativa, Revisões de um Manifesto, é a história da rebelião estudantil liderada pelo jovem Zeffirelli, interpretado pelo sempre brilhante Timothée Chalamet - uma paródia do Maio de 1968.
Sua revolução começa com a morte do jovem Morissot durante um programa de treinamento do exército francês.
“I won’t do it. I don’t mean the program. I mean from when we go home until retirement age. That 48-year period of my life, I mean. That’s what I won’t do. I can no longer envision myself as a grown-up man in our parents’ world.”
Suas últimas palavras são o gatilho para o início de uma revolta nos cafés e universidades de Paris, liderada por ainda outro jovem sensível - o protagonista Zeffirelli.
Arrogante no debate mas ainda hesitante na vida - o tipo de extrovertido que floresce entre os nerds mas murcha diante do público comum - ele encontra naquela revolta sua janela para a grandeza. Escreve panfletos e conclama os colegas estudantes: don’t criticise my manifesto! é sua palavra de ordem, em partes iguais carismática e insegura. Organiza barricadas, desafia o presidente da França para uma partida de xadrez (que metáfora linda) e descreve a si próprio como “um cometa invencível acelera em sua trajetória em direção às fronteiras exteriores da galáxia”.
E no entanto, assim como Morissot, Zeffirelli encontra sua queda. Enquanto tentava consertar o sinal da estação de rádio pirata dos estudantes, o rapaz leva um choque e cai desacordado no (apropriadamente nomeado) Rio Blasé. A revolução começa e termina com a morte da juventude.
Uma última sequência do curta mostra os pais tristes do jovem Zeffirelli indo reconhecer o corpo no hospital, o retorno da normalidade na França e as camisas estilo Che Guevara com o rosto do jovem que circulam pelo mundo. “O tocante narcisismo dos jovens” – completa a narradora – “O sino toca; alunos correm para dentro (de volta às suas salas de aula obedientes); um baloiço rangente se balança no pátio escolar deserto.”
Zeffirelli e Morissot são os dois destinos trágicos que espreitam a juventude. A vida em sociedade é sempre marcada pela oposição entre o novo e o velho; o arriscado e o confortável; o ambicioso e o seguro. O jovem sensível é incapaz de “visualizar a si mesmo como um adulto no mundo dos pais”. É nele que nasce a oposição impossível entre o indivíduo e os coletivos que lhe são impostos: a cidade, a pátria e até mesmo (ou sobretudo) a família.
O CONFLITO FUNDAMENTAL, na verdade, é entre natureza e convenção.1 O jovem é dotado de benesses naturais - a vitalidade, a força, a inteligência; o velho, de benesses artificiais - o dinheiro e o prestígio - e da virtude da sabedoria, adquirida pela experiência. O jovem almeja as benesses do velho. O jovem precisa sacudir a ordem social para fazer valer sua superioridade natural e tornar nulas as vantagens do adversário.
Assim, o conflito geracional é a força motriz da civilização. Portugal existe como país porque Dom Afonso Henriques declarou guerra à própria mãe;2 muito antes, a primeira obra da literatura ocidental tratou de uma disputa que começou quando o jovial Aquiles (o primeiro sensitive young man?) entendeu que conseguiria tomar à força o cetro de ouro herdado pelo velho Agamênon.3
A Ira de Aquiles cantada por Homero é a mesma de qualquer jovem inteligente, sensível e moderadamente bem-nascido que, em algum momento, se deparou com a injustiça do mundo. Suas virtudes naturais e as condições auspiciosas da sua criação fizeram com que ele fosse exposto às estirpes mais altas da sua sociedade. Inicialmente idealizando aquela civilização que lhe dera uma justa dose de vantagens, ele inevitavelmente se desaponta com a desarmonia entre o exercício do poder e a posse da virtude; percebe que o mundo anda desconcertado: “os maus vi sempre nadar em mar de contentamentos” - o lamento de Camões ecoa em seu coração.4
É desse lamento que nascem as disposições irmãs à política e à filosofia. De um lado, a tentativa de ordenar o mundo pela via prática, corrigindo as injustiças; do outro, a abnegação reflexiva, um coping menos valente, mas não necessariamente menos sábio.
A MESMA DECEPÇÃO ANCESTRAL DE AQUILES acontece a inúmeros jovens brasileiros de classe média alta. Nascido numa boa família de burocratas ou profissionais liberais urbanos, o rapaz sensível recebe dentro de casa o catecismo da modernidade. O status do lar descende não das elites cafeeiras do Império, mas da onda profissionalizante alavancada pelo Varguismo ou pela precoce indústria da República Velha. Seus pais e avós cresceram na época em que o funcionalismo público era a maior promessa de prosperidade individual e nacional, provavelmente subiram de vida pela boa educação e pelo cultivo de competências administrativas, e agora transmitem ao novo rebento a mesma ideologia liberal-burguesa cultivada desde os tempos do udenismo.5
Como prezam pela educação, fazem questão de colocar o menino nos melhores colégios da cidade. O lar bem estruturado garante que o menino tire boas notas; talvez, ele se descubra particularmente talentoso para a escrita ou para a matemática, despertando imensas esperanças da família com o futuro sucesso no vestibular (a primeira comunhão dessa religião secular).
Na escola de elite onde estuda, ele faz amigos de diferentes origens: alguns, mais pobres, vêm do subúrbio bancados com bolsas de estudo e se sentem honrados por participar do ambiente; outros, ordens de grandeza mais afluentes, frequentam a escola pela quarta ou quinta geração. Um dia, visita a casa de um desses colegas - uma cobertura gigantesca ou uma mansão com vista paradisíaca. Tem capital cultural e etiqueta para conversar de igual para igual com os pais do amigo e estes tratam-no com simpatia, felizes pelo filho estar fazendo amizades agradáveis.
Em alguma ocasião, às vezes tão corriqueira que não sai do inconsciente, o rapaz defronta-se com o tamanho do abismo financeiro que o separa dos colegas mais abastados. Mais crucial ainda: ao contrário do bolsista pobre, que sempre teve noção dessa distância, o menino de classe média-alta fora ensinado a ver-se como um igual, membro da mesma classe e capaz de atingir os mesmos luxos se fiel fosse ao credo meritocrático. Aos poucos, a exposição à classe alta faz com que perceba o óbvio: ninguém ali ficou multimilionário graças às competências aprendidos na escola. Mais importante ainda, dá-se conta do mesmo fato que escandalizou Aquiles: entre ele e os pais do amigo milionário, não há nenhum déficit de virtude. Se a grande qualidade que rege o mundo é a inteligência, como pregava a ideologia do seu lar, ele não deixa nada a desejar diante dos grandes manda-chuvas que o governam.
O JOVEM SENSÍVEL SE DEPARA COM UM DILEMA: o que fazer diante do desconcerto do mundo? Deve ele declarar guerra à sociedade contemporânea, como o revoltoso Zeffirelli? Ou traçar o caminho da abnegação completa, como tragicamente elege Aquiles nos primeiros dois terços da Ilíada?
Para mim, é mais fácil visualizar esse caminho como duas escolhas paralelas. Cabe ao jovem, em primeiro lugar, escolher entre tentar mudar o mundo ou resignar-se a contemplá-lo. De um lado, tomar riscos e enfrentar dificuldades em nome de uma glória incerta (se a vitória parece provável, a ambição ainda é pequena); do outro, o gozo despreocupado dos prazeres altos e baixos que a imensidão do mundo lhe oferece.
À dúvida prática soma-se um conflito moral: a tentação suprema do ressentimento. Caso escolha a vida ativa, será constantemente lembrado dos louros imerecidos que a sociedade distribui e dos possíveis atalhos que tantos outros tomam e que estão também à sua disposição; o desejo de mudar o mundo acaba se substituindo pelo desejo de engrandecimento pessoal e o potencial rei torna-se tirano.
A via intelectual, por outro lado, só demanda uma sincera disposição à renúncia: só funciona caso o pretenso pensador consiga calar o desejo pelos aplausos da multidão. Não é raro que acadêmicos escolham a carreira não por abnegação, mas justamente pela satisfação do ego que proporciona: “que reles o povo, que sábio sou” - é a vaidade que lhes cabe vencer. Enquanto continua se comparando com o povo, o intelectual caminha na direção do ressentimento e do arrependimento tardio por uma juventude não vivida. O filósofo verdadeiro, todavia, se for capaz de superar o apego aos louvores mundanos, encontra talvez o caminho mais direto para uma vida de felicidade.6
PREVALECENDO O INSTINTO DO JOVEM, no entanto, desponta um caminho.
Duas características distinguem o jovem do velho: a primeira é a conexão com o corpo e portanto com o mundo. Enquanto na velhice o corpo decaído é sobretudo um estorvo à mente repleta de sabedoria, na juventude são os instintos e desejos vitais que falam mais alto.
Bernardo Soares, no Livro do Desassossego, até chega a esboçar um argumento persuasivo contra a ação. Diz que “mais vale supremamente não agir que agir inutilmente, fragmentariamente, imbastantemente, como a inúmera supérflua maioria inane dos homens.” Apesar disso, ele próprio admite que a conclusão é filha de frustrações, do escapulir de uma vida que não mais “se entrega de corpo e alma” como desejara - o ascetismo é província dos idosos.
A posse extrema da vida continua sendo “o desejo de toda a alma elevada e forte”, isto é, de toda alma jovem.
Dessa mesma elevação da alma, o jovem herda seu maior privilégio - a maneira fácil, quase espontânea, com que encontra e se admira diante da beleza que o circunda. Nas palavras de Nietzsche:
A indignação é o privilégio dos intocáveis7; o pessimismo também.
‘O mundo é perfeito’ - assim proclama o instinto das pessoas de maior espírito, o instinto do dizer-sim. […] Eles são o tipo de pessoa mais admirável: o que não os impede de serem também os mais alegres e os mais gentis.
O maravilhar-se com o mundo é o privilégio maior das crianças, ainda herdado pelo jovem, que aos poucos se dissolve no adulto. (Imagino que um dos maiores privilégios de uma boa velhice seja a oportunidade de ainda maravilhar-se com o mundo de vez em quando;8 quem sabe, seja por isso que as pessoas têm filhos?)
É também o grande antídoto contra o ressentimento, essa tentação maior que impele o jovem sensível aos dois piores caminhos de inveja e cinismo. Pela nossa capacidade de contemplar as pequenas e grandes belezas do mundo, somos capazes de suportar com magnanimidade as maiores injustiças.
O caminho do “jovem ambicioso e sonhador”, no entanto, está longe de ser fácil. É, na verdade, o mais difícil dos quatro - o que exige mais sacrifícios e promete menos certezas. Educado durante uma vida sob o credo liberal-meritocrático, ele precisa agora descobrir por conta própria qual caminho trilhar e como vencê-lo; precisa ser capaz de singrar as águas entre a Scylla do conforto e a Caríbdis da vaidade. Seu caminho é natural, mas nunca ‘racional’. Assim, sempre suscitará questionamentos mesmo do jovem mais virtuoso.
Quando esses questionamentos me acometem, costumo pedir ajuda ao velho. Imagino um diálogo com meu eu-de-70-anos, em que pergunto qual foi o impacto de certa derrota ou certo sacrifício. É o meu eu-velho, debilitado e incapaz de tentar o que hoje tento, que me responde:
“Exceto a morte, toda derrota é psicológica; toda derrota torna-se uma história para contar” - e complementa - “No fim da vida, no leito de morte, o único arrependimento possível é não ter tentado.”
“Valeu a pena então?” - Pergunto angustiado.
Já despido da vergonha de parecer clichê, ele responde com os mesmos versos que recitamos desde a juventude:
Tudo vale a pena
Se a alma não é pequena.
Quem quer passar além do Bojador
Tem que passar além da dor.
Deus ao mar o perigo e o abismo deu,
Mas nele é que espelhou o céu.
Ver, sobre esse tópico, as colocações de Leo Strauss em City and Man e o ensaio interpretativo de Alan Bloom sobre a República. O diálogo só começa quando o pai de Polemarco, Céfalo, se ausenta da discussão. Implicação óbvia: é preciso que o velho saia para que se faça verdadeira filosofia.
Seria Portugal, pela história de origem, o seio da rejeição à longhouse?
De todo modo, deixo ao leitor a homenagem de Fernando Pessoa a Dona Tareja:
As nações todas são mistérios.
Cada uma é todo o mundo a sós.
Ó mãe de reis e avó de impérios.
Vela por nós!Teu seio augusto amamentou
Com bruta e natural certeza
O que, imprevisto, Deus fadou.
Por ele reza!Dê tua prece outro destino
A quem fadou o instinto teu!
O homem que foi o teu menino
Envelheceu.Mas todo vivo é eterno infante
Onde estás e não há o dia.
No antigo seio, vigilante,
De novo o cria!
Ver o comentário de Seth Benardette em Achilles and the Iliad:
Somente quando Aquiles jura pelo cetro de Agamêmnon (caso seja o mesmo cetro de Agamêmnon) é que o conflito entre os dois se expõe abertamente:
«Sim, por este cetro, que jamais voltará a criar ramos ou folhas desde que, pela primeira vez, foi cortado do tronco na montanha; nem tornará a florir, pois a lâmina de bronze o despojou de folhas e de casca. Agora, por sua vez, os filhos dos Aqueus — ministros da justiça — é que o carregam, eles que guardam as leis oriundas de Zeus» (Ilíada I 234-239).
Em seguida ele atira o cetro ao chão, «cravejado de pregos de ouro» — o mesmo cetro cuja verdadeira origem só conheceremos muito depois, pouco antes de Agamêmnon, fazendo «o que é justo» (Ilíada II 73; cf. escol. II [Porfírio]; F. JACOBY, SBPAW, 1932, pp. 586-594), pôr à prova os Aqueus, temendo que a recusa de Aquiles em lutar e seu desejo de regressar tenham contaminado todo o exército:
«Levantou-se o vigoroso Agamêmnon com o cetro que o artífice Hefesto trabalhara com engenho: Hefesto dera-o a Zeus, o senhor Crônida; Zeus entregou-o ao Tesoureiro das Riquezas (que mata com o seu fulgor); o senhor Hermes confiou-o a Pélops, o domador de cavalos; Pélops, por sua vez, passou-o a Atreu, pastor de seu povo; Atreu, ao morrer, deixou-o ao rico Tiestes; e este finalmente o legou a Agamêmnon, para que governasse muitas ilhas e toda Argos» (Ilíada II 100-108; cf. 453 sqq.).
LESSING, mais tarde, no Laocoon (§ 16), mostrou com elegância por que um mesmo cetro recebe duas descrições (ou, caso existam dois cetros, por que há dois):
«Aquele, obra de Vulcano; este, talhado por mão desconhecida nos montes. Aquele, posse ancestral de nobre estirpe; este, destinado a preencher a primeira e melhor das mãos. Aquele, empunhado por um monarca que se estende sobre muitas ilhas e sobre toda Argos; este, conduzido por alguém vindo do seio dos Gregos, a quem, entre outros, se confiou a guarda das leis. Eis a distância que realmente separava Agamêmnon e Aquiles — uma distância que o próprio Aquiles, por mais cego que estivesse de ira, não podia deixar de reconhecer.»
O conflito entre ambos opõe autoridade e poder, os dons da natureza aos da herança. A autoridade de Agamêmnon reside apenas em palavras (no fascínio de sua linhagem); se Aquiles se submetesse a elas como se fossem atos, seria julgado fraco e covarde (Ilíada I 293 sqq.; cf. 132-139). Briseida é só o pretexto para essa divergência mais séria, que surge sempre que poder e posição não coincidem.
Soneto ao Desconcerto do Mundo.
A história política da UDN é certamente um tema sub-explorado entre os conservadores brasileiros. Minha leitura é que o dito “Udenismo”, especialmente quando abraça a pauta anti-corrupção de Jânio Quadros e Carlos Lacerda, era uma coalizão impraticável entre elites aristocráticas tradicionais e a classe média-alta urbana emergente, em oposição à elite industrial emergente e à classe média-baixa de trabalhadores urbanos. O grande erro de Marx foi não perceber que a verdadeira luta de classes acontece dentro de cada classe.
Contra essa teoria, vale resgatar o embate entre Sócrates e Cálices, no diálogo Górgias:
Sócrates — Erra quem apregoa que felizes são os que de nada necessitam?
Cálicles — Nesse caso, as pedras e os cadáveres seriam felicíssimos.
Bem como os versos imortais de Fernando Pessoa:
Triste de quem vive em casa,
Contente com o seu lar,
Sem que um sonho, no erguer de asa,
Faça até mais rubra a brasa
Da lareira a abandonar!Triste de quem é feliz!
Vive porque a vida dura.
Nada na alma lhe diz
Mais que a lição da raiz —
Ter por vida a sepultura.
Chandala, traduzido aqui por Intocáveis para facilitar o entendimento. Nessa passagem, Nietzsche está discutindo o Código de Manu, que separa as pessoas em castas. Os Chandala são a casta mais baixa, enquanto a casta mais alta representa os intelectuais-governantes cujo olhar positivo diante do mundo ele elogia.
Sobre isso, ver o melhor filme desse século: A Grande Beleza, de Paolo Sorrentino.
Bom texto, feliz em lê-lo justamente em um momento onde preciso tomar essa decisão: me arriscar e sonhar, ou me aquietar e buscar o seguro.
Nossa, me lembrou um texto muito bom que li quando era mais novo sobre a importância do conflito geracional. Vou procurar para te mandar!